A apuração das notas do Carnaval do Rio de Janeiro, que consagrou a Beija-Flor como campeã, gerou descontentamento em diversas escolas, que alegaram tratamento desigual e justificativas de descontos questionáveis. As seis primeiras colocadas se apresentaram no Sambódromo da Marquês de Sapucaí na noite anterior.
A Grande Rio, vice-campeã, recorreu à Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), responsável pelos desfiles, apontando divergências entre as notas registradas pela Liesa e as divulgadas na quarta-feira de cinzas. A escola de Duque de Caxias defendia que deveria dividir o primeiro lugar com a Beija-Flor.
A Liesa respondeu que as notas seriam mantidas, confirmando a Grande Rio como vice-campeã e justificando o erro no mapa de notas como um problema de digitação.
A Unidos de Padre Miguel, rebaixada para a Série Ouro após ficar em último lugar, também recorreu à Liesa, contestando as justificativas dos jurados, como descontos relacionados a problemas em carros de som sob responsabilidade da organização do carnaval.
A Unidos também denunciou “racismo religioso” na avaliação de uma jurada, que criticou o excesso de termos em iorubá no samba-enredo, dialeto africano usado pela escola em referência à sua cultura.
A Acadêmicos do Salgueiro, 7ª colocada e ausente no Desfile das Campeãs, criticou duramente os jurados, acusando-os de serem “canalhas”, “ladrões” e “ratos”.
Mocidade, Vila Isabel e Tijuca também expressaram insatisfação com o sistema de notas da Liesa. Até o momento da publicação, a Liesa não respondeu ao contato da reportagem. Abaixo, seguem as reclamações de cada escola.
A disputa foi acirrada: a Beija-Flor, sem descontos, alcançou 270 pontos, enquanto a Grande Rio ficou com 269,9 pontos. A escola de Duque de Caxias identificou uma divergência entre as notas divulgadas e as registradas pela Liesa no mapa de notas, no quesito bateria, o único em que a Grande Rio foi penalizada.
Na leitura dos resultados, a escola recebeu duas notas 10 e duas 9,9. Com o descarte da menor nota, ficou com 29,9 no quesito, enquanto a Beija-Flor obteve 30 pontos.
Contudo, o mapa de notas da Liesa registrou três notas 10 e uma 9,9 para a Grande Rio, que reivindicava o descarte desta última para empatar com a Beija-Flor.
A Liesa alegou erro de digitação e manteve o resultado. As justificativas dos jurados confirmaram as duas penalidades à bateria da Grande Rio.
Os jurados Ary Jayme Cohen e Geiza Carvalho atribuíram as notas 9,9 à bateria da Grande Rio. Cohen justificou a penalidade com a imprecisão na resposta das caixas com os atabaques, enquanto Geiza reclamou do baixo volume dos curimbós.
O mestre Fafá, responsável pela bateria da escola, contestou a avaliação de Geiza, afirmando que o problema era do sistema de som da Sapucaí e não dos instrumentistas. Ele publicou um vídeo da arquibancada, onde os curimbós eram ouvidos claramente, defendendo que a falha era mecânica e não da bateria.
O manual dos julgadores da Liesa orienta a desconsiderar “eventual pane no carro de som e/ou no sistema de sonorização da Passarela”.
Em outra mensagem, Fafá expressou sua frustração por ver sua escola perder décimo a décimo justamente no quesito que defende.
O desfile da Grande Rio homenageou as águas do Pará, com destaque para a rainha de bateria Paolla Oliveira, em sua despedida da passarela. Os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora apresentaram fantasias e alegorias luxuosas, consideradas favoritas ao título.
Unidos de Padre Miguel questiona rebaixamento
A Unidos de Padre Miguel celebrou seu retorno à Sapucaí após 1972, com um enredo sobre Iyá Nassô, fundadora do candomblé da Casa Branca do Engenho Velho. A escola era considerada uma das favoritas ao Desfile das Campeãs, com fantasias luxuosas e alegorias elaboradas.
A agremiação da zona oeste do Rio sofreu muitos descontos, principalmente em harmonia, alegorias e adereços, fantasias e comissão de frente, somando 266,8 pontos, 1,1 ponto atrás da 11ª colocada, Mocidade Independente de Padre Miguel.
O resultado gerou indignação na escola e nas redes sociais, com a hashtag #FechadoscomPadreMiguel.
A Unidos de Padre Miguel expressou confiança em sua permanência no Grupo Especial, alegando ter apresentado um “desfile digno, vibrante e emocionante”.
“Sabíamos que não seria fácil, reconhecemos que cometemos algumas falhas, mas nada que justificasse as notas tão baixas e injustas que recebemos”, afirmou a Unidos em nota. “O resultado do julgamento é inaceitável e não condiz com o que apresentamos na Avenida”.
A escola recorreu à Liesa, buscando a revisão das notas e garantindo que seu objetivo não é prejudicar outras escolas, mas sim assegurar uma avaliação justa e transparente.
A Unidos questiona o desconto por elementos alheios à sua responsabilidade, como a falha técnica de um carro de som, e alega “inconsistências graves” diante do “desfile grandioso” apresentado.
“A escola busca os meios adequados para contestar a decisão, sempre pautada no respeito, na isonomia e na valorização do trabalho de toda a sua comunidade”, afirmou. “A luta é por justiça e pelo reconhecimento do esforço de cada integrante que se dedicou para levar à Avenida um desfile digno da história da Unidos de Padre Miguel”.
Outra reclamação da escola é a de racismo religioso nos descontos dados por uma jurada em samba-enredo. Ana Paula Fernandes retirou 3 décimos da agremiação nesse quesito, justificando que haveria um “excesso de termos em iorubá”, dificultando o entendimento.
A escola rebateu, afirmando que sua oralidade sagrada não é erro, excesso ou algo a ser silenciado, e que a punição foi direcionada a uma escola que exaltou a história e resistência do primeiro terreiro de Candomblé do país. A escola também alegou que o glossário enviado aos jurados pela Liesa demonstrava que havia total possibilidade de compreensão do enredo.
De acordo com o manual da Liesa, os jurados devem considerar, ao analisar a letra do samba, “a adequação ao enredo; sua riqueza poética, beleza e bom gosto; sua adaptação à melodia, ou seja, o perfeito entrosamento dos seus versos com os desenhos melódicos”.
Salgueiro chama jurados de canalhas, ladrões e ratos
A Acadêmicos do Salgueiro usou termos fortes ao reclamar das notas dos jurados, após apresentar o enredo “Salgueiro de Corpo Fechado”, sobre as expressões de espiritualidade e rituais de proteção brasileiros.
A ala de passistas da escola venceu o prêmio Estandarte de Ouro e a agremiação era considerada uma das favoritas ao Desfile das Campeãs.
No entanto, a escola ficou em 7° lugar, com 269,2 pontos, sendo descontada em enredo, alegorias e adereços, fantasias e samba-enredo.
Em nota, a escola acusou os jurados de serem “ladrões” e parte de uma “quadrilha de canalhas” que está tentando acabar com o Carnaval.
O Salgueiro prometeu trabalhar com outras escolas de samba por um Carnaval claro, limpo e justo.
Em outra nota, a agremiação esclareceu que suas críticas não eram direcionadas ao presidente da Liesa, Gabriel David, nem ao coordenador de jurados, Thiago Farias, mas reafirmou os termos contundentes.
O Salgueiro pediu que a liga das escolas reformule o quadro de jurados e implemente critérios de avaliação que permitam um “julgamento justo e transparente”.
A escola espera mudanças reais para o Carnaval de 2026 e confia que a Liesa tomará as providências necessárias para impedir que a maior festa popular do Brasil volte a ser alvo de julgamentos sem critério, conduzidos por jurados amadores e despreparados.
Mocidade questiona rejeição ao “novo” e ao “diferente”
A Mocidade Independente de Padre Miguel ficou em 11° lugar, com perdas principalmente em enredo, fantasias, alegorias e adereços e comissão de frente.
A comissão de frente, com um robô gigante e painéis de LED, havia chamado atenção e vencido o prêmio Estandarte de Ouro.
O enredo “Voltando para o futuro – não há limites para sonhar” trouxe fantasias high-tech e referências à família Flintstones, aos Jetsons e a videogames, idealizado pelos carnavalescos Renato Lage e Márcia Lage.
Após a apuração, a escola expressou insatisfação, alegando que os jurados favoreceram visões mais tradicionais do Carnaval.
“É desmotivante ter um julgamento com olhar que não aceita o que é novo e o que é diferente. Ter quesitos aclamados por todos e, que mesmo assim, ainda são penalizados na hora das notas, dói no coração da nossa Estrela”, escreveu.
A Mocidade se define como diferente, inovadora e pioneira, reafirmando seu compromisso com a reinvenção e a quebra de paradigmas.
Outra reclamação da agremiação foi a diferença no tratamento entre escolas, especialmente no quesito evolução, com notas 9,9 e 9,8. Uma das juradas alegou evolução irregular e falta de empolgação, enquanto outro notou um “claro espaço” entre um carro e uma ala.
O quesito evolução, de acordo com o manual da Liesa, deve julgar “a fluência da apresentação”, “a espontaneidade, a criatividade, a empolgação e a vibração dos desfilantes” e “a coesão do desfile”.
A Mocidade se apresentou na terceira noite de desfiles, quando as escolas foram divididas em três apresentações, dificultando a comparação entre elas.
Vila Isabel diz estar triste e insatisfeita
A Unidos de Vila Isabel desfilou com um enredo sobre assombrações e figuras assustadoras do folclore brasileiro, com o conceito do carnavalesco Paulo Barros.
Com 269,1 pontos, a escola ficou em 8° lugar e de fora do Desfile das Campeãs, com penalizações em samba-enredo, enredo e mestre-sala e porta-bandeira.
A agremiação afirmou ter entregue um carnaval de excelência, que contradisse as notas dos jurados, expressando tristeza e insatisfação com o resultado.
Carnavalesco da Tijuca reclama da “estrutura”
A Unidos da Tijuca também ficou de fora do Desfile das Campeãs, em 9° lugar, com 268,8 pontos e penalizações em alegorias e adereços, evolução e fantasias.
A escola contou a história do orixá Logun-Edé, com a cantora Anitta como uma das compositoras do samba-enredo. A Tijuca era considerada uma das favoritas a voltar no sábado das Campeãs.
O carnavalesco Edson Pereira agradeceu à comunidade do Borel e fez críticas veladas ao julgamento dos desfiles, prometendo não desanimar e vencer a estrutura que não os favorece.