A apuração das notas do Carnaval do Rio de Janeiro, que consagrou a Beija-Flor como campeã, gerou descontentamento em diversas escolas, que alegaram tratamento desigual e justificativas de descontos questionáveis. As seis primeiras colocadas se apresentaram no Sambódromo da Marquês de Sapucaí na noite anterior.
A Grande Rio, vice-campeã, apresentou um recurso à Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), responsável pelos desfiles, devido a uma divergência entre as notas registradas pela Liesa e as divulgadas na quarta-feira de cinzas. A escola de Duque de Caxias acreditava que deveria dividir o primeiro lugar com a escola de Nilópolis.
A Liesa respondeu que as notas seriam mantidas, confirmando a Grande Rio como vice-campeã, e justificou o erro no mapa de notas como um erro de digitação.
A Unidos de Padre Miguel, rebaixada para a Série Ouro após ficar em último lugar, também recorreu à Liesa. A escola, campeã do grupo de acesso em 2024, apontou inconsistências nas justificativas dos jurados, como descontos por problemas em carros de som sob responsabilidade da organização do carnaval.
A Unidos também alegou “racismo religioso” na avaliação de uma jurada, que criticou o excesso de palavras em iorubá no samba-enredo, dialeto africano utilizado pela escola em representação à sua cultura.
A Acadêmicos do Salgueiro, 7ª colocada e ausente no Desfile das Campeãs, fez duras críticas aos jurados, acusando-os de serem “canalhas”, “ladrões” e “ratos”.
Mocidade, Vila Isabel e Tijuca também questionaram o sistema de notas da Liesa. Até o momento, a Liesa não se manifestou sobre as reclamações. A seguir, as contestações de cada escola.
A disputa foi acirrada: a Beija-Flor obteve 270 pontos, sem descontos, enquanto a Grande Rio alcançou 269,9 pontos, perdendo por apenas um décimo. A agremiação de Duque de Caxias identificou uma diferença entre as notas divulgadas e as registradas pela Liesa.
A divergência estaria no quesito bateria, o único em que a Grande Rio foi penalizada. Na divulgação, a escola recebeu duas notas 10 e duas 9,9. Após o descarte da menor nota, a escola obteve 29,9 pontos, enquanto a Beija-Flor alcançou 30 pontos.
No entanto, o mapa de notas da Liesa indicava que a Grande Rio havia recebido três notas 10 e uma 9,9. A agremiação reivindicava o descarte dessa nota 9,9, o que resultaria em um empate com a escola de Nilópolis.
A Liesa justificou o erro no mapa de notas como um erro de digitação e manteve o resultado. As justificativas dos jurados confirmaram as duas penalidades à agremiação.
As notas 9,9 foram atribuídas à bateria da Grande Rio pelos jurados Ary Jayme Cohen e Geiza Carvalho.
Cohen justificou o desconto de um décimo alegando imprecisão com efeito de “flam“ na resposta das caixas no final da apresentação da bateria com os atabaques. No jargão dos ritmistas, “flam“ indica falta de sincronia na bateria.
Geiza reclamou que os curimbós soaram muito baixos na apresentação da bateria, dificultando a execução de bossas e paradinhas, resultando em um desconto de 0,1 ponto.
Nas redes sociais, o mestre Fafá, responsável pela bateria da escola, atribuiu o problema registrado por Geiza às caixas de som da Sapucaí, e não aos instrumentistas, e publicou um vídeo da arquibancada em que os curimbós podiam ser ouvidos perfeitamente.
O manual dos julgadores da Liesa recomenda que os jurados não considerem “eventual pane no carro de som e/ou no sistema de sonorização da Passarela“.
Posteriormente, mestre Fafá publicou outra mensagem, lamentando a perda da disputa “décimo a décimo“ justamente no quesito que defende.
O desfile da Grande Rio homenageou as águas do Pará, com destaque para a rainha de bateria Paolla Oliveira, em sua despedida da passarela.
Os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora apresentaram fantasias e alegorias luxuosas, em um desfile que era considerado um dos favoritos ao título.
Unidos de Padre Miguel questiona rebaixamento
A Unidos de Padre Miguel celebrou o retorno à Sapucaí após 1972, após vencer a Série Ouro, com um enredo sobre Iyá Nassô, uma das fundadoras do candomblé da Casa Branca do Engenho Velho.
A escola era vista como uma das favoritas ao Desfile das Campeãs, com fantasias luxuosas e alegorias bem elaboradas.
No entanto, a agremiação sofreu muitos descontos, principalmente nos quesitos de harmonia, alegorias e adereços, fantasias e comissão de frente, resultando em uma pontuação final de 266,8, atrás da 11ª colocada, a Mocidade Independente de Padre Miguel.
O resultado gerou indignação na escola e nas redes sociais, com a hashtag #FechadoscomPadreMiguel em apoio à agremiação.
A Unidos de Padre Miguel expressou confiança em permanecer no Grupo Especial, apresentando um “desfile digno, vibrante e emocionante, reconhecido pelo público e por tantos apaixonados pelo Carnaval“.
A escola reconheceu algumas falhas, mas considerou as notas recebidas “tão baixas e injustas“ e apresentou um recurso à Liesa para revisão das notas, buscando uma avaliação “justa e transparente“.
Entre os questionamentos da Unidos, está o desconto por elementos alheios à responsabilidade da escola, como a falha técnica de um carro de som, e apontou “inconsistências graves“ diante do “desfile grandioso“ que apresentaram.
A escola busca os meios adequados para contestar a decisão, sempre pautada no respeito, na isonomia e na valorização do trabalho de toda a sua comunidade, lutando por justiça e pelo reconhecimento do esforço de cada integrante.
Outra reclamação da escola é a de racismo religioso nos descontos dados por uma jurada em samba-enredo, que criticou o “excesso de termos em iorubá“, alegando dificuldade no entendimento. Ana Paula Fernandes tirou 3 décimos da agremiação nesse quesito.
Diante da justificativa da jurada, a escola compartilhou um texto que aponta marginalização da cultura afro-brasileira.
A escola defende que sua “oralidade sagrada não é erro, não é excesso e muito menos pode ser silenciada“, e que a punição foi motivada pela exaltação da história e resistência do primeiro terreiro de Candomblé do país, com um glossário enviado aos jurados pela Liesa demonstrando a total possibilidade de compreensão do enredo.
De acordo com o manual da Liesa, os jurados devem considerar, ao analisar a letra do samba, “a adequação ao enredo; sua riqueza poética, beleza e bom gosto; sua adaptação à melodia, ou seja, o perfeito entrosamento dos seus versos com os desenhos melódicos“.
Salgueiro chama jurados de canalhas, ladrões e ratos
A Acadêmicos do Salgueiro utilizou termos fortes ao criticar as notas dos jurados. A agremiação apresentou o enredo “Salgueiro de Corpo Fechado”, sobre as diferentes expressões de espiritualidade e rituais de proteção brasileiros.
A escola foi descontada em enredo, alegorias e adereços, fantasias e samba-enredo, ficando em 7° lugar, com 269,2 pontos, e de fora do Desfile das Campeãs.
Em nota, a escola acusou os jurados de serem “ladrões“ e parte de uma “quadrilha de canalhas“ que está tentando acabar com o Carnaval, prejudicando aqueles que trabalham com seriedade, e prometeu lutar por um Carnaval claro, limpo e justo.
Em uma nova nota, a agremiação esclareceu que suas críticas não eram direcionadas ao presidente da Liesa, Gabriel David, nem ao coordenador de jurados, Thiago Farias, mas reafirmou o uso de termos contundentes, pedindo que a liga das escolas reformule completamente o quadro de jurados e implemente critérios de avaliação que permitam um “julgamento justo e transparente”.
O Salgueiro acredita em mudanças reais para o Carnaval de 2026 e confia que a Liesa tomará as providências necessárias para impedir que a maior festa popular do Brasil volte a ser alvo de julgamentos sem critério, conduzidos por jurados amadores e despreparados, e que não aceitará que o Carnaval continue refém de tais julgamentos.
Mocidade questiona rejeição ao “novo” e ao “diferente”
A Mocidade Independente de Padre Miguel ficou em 11° lugar, com perdas nos quesitos enredo, fantasias, alegorias e adereços e comissão de frente.
O enredo “Voltando para o futuro – não há limites para sonhar” trouxe fantasias high-tech e referências à família Flintstones, aos Jetsons e a videogames, idealizado pelos carnavalescos Renato Lage e Márcia Lage.
A escola demonstrou insatisfação com o julgamento, alegando que os jurados favoreceram visões mais tradicionais do Carnaval, e se apresentou como diferente, inovadora e pioneira, que não deixará de erguer sua bandeira e plantar sua raiz.
Outra reclamação da agremiação foi a diferença no tratamento entre escolas, especialmente no quesito evolução, com críticas à irregularidade na evolução e falta de empolgação, além de um “claro espaço“ entre um carro e uma ala.
O manual da Liesa define que o quesito evolução deve julgar “a fluência da apresentação”, “a espontaneidade, a criatividade, a empolgação e a vibração dos desfilantes” e “a coesão do desfile”.
A Mocidade se apresentou na terceira noite de desfiles, quando as escolas foram divididas em três apresentações, com os jurados lançando suas notas na mesma noite, o que pode dificultar a comparação entre escolas.
Vila Isabel diz estar triste e insatisfeita
A Unidos de Vila Isabel desfilou com um enredo sobre assombrações e apresentou curupiras, sacis-pererês, boitatás, cucas e outras figuras assustadoras do folclore brasileiro, mas ficou em 8° lugar.
A escola afirmou que entregou um carnaval de excelência, que contradisse as notas atribuídas pelos jurados, e expressou tristeza e insatisfação diante do resultado, que não condiz com o julgamento e a colocação recebida.
Carnavalesco da Tijuca reclama da “estrutura”
A Unidos da Tijuca também ficou de fora do Desfile das Campeãs, com penalizações em alegorias e adereços, evolução e fantasias.
A escola contou a história do orixá Logun-Edé, desde sua origem na África até o renascimento no Brasil, e era apontada como uma das favoritas a voltar no sábado das Campeãs.
O carnavalesco Edson Pereira agradeceu à comunidade do Borel por fazer um “lindo carnaval” e fez críticas veladas ao julgamento dos desfiles, afirmando que não vai esmorecer e que vencerão toda essa estrutura que não os favorece, não permitindo que os calem.